Escrita na prisão por um condenado à morte, essa obra latina do século VI não deve nada, ou deve muito pouco, às circunstâncias “trágicas” de sua composição. Trata-se de uma obra-prima da literatura e do pensamento europeu, ela se basta, e teria o mesmo valor se ignorássemos tudo a respeito daquele que a concebeu entre duas sessões de tortura, à espera de uma execução. Mas, dado que essa obra-prima não é anônima, nada perde por ter um autor e ser situada em suas circunstâncias, torna-se também, assim o testemunho da grandeza à qual um homem pode elevar-se pelo pensamento em face da tirania e da morte.
“Há livros e livros, autores e autores. E obras. E pensadores. E clássicos. E mais que clássicos. A consolação da Filosofia pertence ao topo. Faz parte da formação do Ocidente. Qual seu mistério? Por que ajudou a forjar a forma com a qual lidamos — ou lidávamos — com a vida e suas encruzilhadas, com as decepções, traições, ardis da existência? Tantos séculos nos separam de seu contexto, do sofrimento de Boécio (†524), de suas sessões de tortura entre um parágrafo e outro que, perplexo, custo a crer que em pleno século XXI, seu elevado misto de poesia e prosa literária e filosófica ainda seja continuamente redescoberto por gerações hoje atônitas com o ocaso do Ocidente, sua ruína. E no Brasil! Pois esse é nosso atual contexto, e sua reflexiva consolação ainda consegue encontrar eco em nossos conturbados espíritos.”
— Ricardo da Costa, na apresentação
Sobre o autor
Anício Mânlio Torquato Severino Boécio (Roma 480 — Pavia, 524 ou 525), mais conhecido simplesmente por Boécio, foi um filósofo, estadista e teólogo romano que se notabilizou pela sua tradução e comentário do Isagoge de Porfírio, obra que se transformou num dos textos mais influentes da Filosofia medieval europeia. Traduziu, comentou ou resumiu, entre outras obras dos clássicos gregos, para além do Isagoge de Porfírio e do Organon de Aristóteles, vários tratados sobre matemática, lógica e teologia. Notabilizou-se também como um dos teóricos da música da antiguidade clássica greco-latina, escrevendo a obra De institutione musica, também aparentemente com base em antigos escritos gregos. Sendo senador de Roma, no ano de 510 foi nomeado cônsul e em 520 foi elevado a chefe do governo e dos serviços da corte pelo rei ostrogótico Teodorico, o Grande (r. 474–526).
Pouco depois, devido a desacordos políticos e por ter apoiado um senador apontado pelo rei como traidor, foi ele próprio acusado de traição a favor do Império Bizantino e de magia, sendo subsequentemente torturado, condenado à morte e executado. Enquanto aguardava sob prisão a execução, escreveu De Consolatione Philosophiae (Do Consolo pela Filosofia), obra que versa, entre outros temas, o conceito de eternidade e na qual tenta demonstrar que a procura da sabedoria e do amor de Deus é a verdadeira fonte da felicidade humana. Membro de uma família ligada ao então nascente cristianismo, é considerado pela Igreja Católica Romana, pelo seu contributo para a teologia cristã e pelos serviços que prestou aos cristãos, um mártir e um dos Padres da Igreja.
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